sábado, 21 de maio de 2011

Sabedoria Hermética no Século 21

 
Como o Corpus Hermeticum Ensina o Cidadão  a Viver Melhor


Carlos Cardoso Aveline



O estudo do “Corpus Hermeticum” − uma antiga coletânea de textos atribuídos a Hermes Trismegisto −  produz um efeito que pode ser descrito como “calmamente revolucionário”.   Ele dirige a mente do cidadão moderno de volta para o alto,  e o liberta das estreitas preocupações de curto prazo do eu pessoal.

Foi há pouco mais de um século, em pleno século 19,  que a  pensadora russa Helena P. Blavatsky questionou os alicerces da civilização materialista enquanto fazia renascer a tradição esotérica.  H.P.B.  desmascarou as ilusões das religiões sacerdotais e monoteístas e estabeleceu as bases de uma aliança de longo prazo entre três aspectos saudáveis da consciência humana:  o pensamento científico, o pensamento filosófico e a religiosidade não-dogmática. Ela forneceu as chaves que permitem interpretar e ver a sabedoria comum aos principais textos filosóficos e religiosos de todos os povos e de todas as  épocas.  Ao propor a criação de um núcleo de fraternidade universal que ignore fronteiras nacionais, classes  sociais ou ideologias políticas e religiosas, ela formulou a base filosófica da futura civilização global e solidária  que irá emergir durante o século 21.  

H.P.B. foi atacada quase por unanimidade pelos setores dominantes da sociedade do seu tempo. Isso era inevitável. Assim como outros grandes místicos e sábios de séculos e milênios anteriores, ela foi criticada e perseguida − mas cumpriu sua missão. Hoje, o conhecimento universal de todos os tempos está mais perto do cidadão comum.  A filosofia teosófica inspira a vida diária de dezenas de milhares de pessoas de todos os povos e, em grande parte do mundo,  já é fácil para qualquer indivíduo questionar o domínio autoritário desta ou daquela igreja ou religião.  

A sabedoria esotérica liberta a consciência humana,  porque  ensina a alcançar a paz sem a intermediação deste ou daquele ritual ou sacerdote. Sentimentos menores como medo, raiva, ambição e preocupações pessoais perdem sentido quando o indivíduo contempla as verdades universais. Se olharmos para o alto, o céu noturno nos mostrará um número ilimitado de estrelas situadas a milhões de anos-luz.  Quando pensamos no cosmo a partir de uma visão teosófica ou hermética,  redescobrimos com humildade a nossa pequena existência como indivíduos. A grande tarefa  existencial é tornar a nossa breve vida física muito mais significativa,  através da ampliação dos nossos limites de espaço e tempo. Os sábios colocam conscientemente a  sua  existência individual dentro do contexto imenso do espaço e tempo infinitos.

No entanto, enquanto a cabeça se eleva,  é necessário manter os pés firmemente no chão. Excessos de sonho ou de ambição atrapalham.  Mesmo os sonhos “espirituais”, se não forem acompanhados e testados pela ação prática correspondente, serão muito mais parte do problema do que da solução.  Para ligar o sonho com a realidade,  é preciso desenvolver três virtudes ao mesmo tempo:   paciência para aceitar o que não pode ser mudado,   coragem para  mudar o que pode ser mudado, e sabedoria  para distinguir uma coisa da outra.

Isso não é tudo.  Devemos  também simplificar a nossa vida. É recomendável diminuir a quantidade de metas e de preocupações.  Assim, o aprendiz aprende pouco a pouco que renunciar à pressa é libertar-se interiormente. E só então a prática da contemplação ganha um espaço duradouro em sua existência.  A partir deste momento o  sentimento de paz se faz mais presente,  porque ele começa a transcender a ilusão.  Apesar das suas limitações, os textos atribuídos a Hermes Trismegisto ajudam a mapear  o caminho deste aprendizado. 

Há hoje várias versões dos fragmentos reunidos no  Corpus Hermeticum , e uma das melhores é a compilação feita por um dos discípulos diretos de H. P. Blavatsky.[1]  O Corpus Hermeticum  parece  ter sido organizado na forma atual entre os séculos  II e III da era cristã, e, sem dúvida,  recebeu uma dose considerável de enxertos teológicos cristãos, durante as recompilações feitas na idade média. Para HPB, na verdade, eles são “lembranças mais ou menos vagas” dos textos autênticos que haviam sido destruídos.  Ela aponta como texto diretamente autêntico apenas a Tábua de Esmeralda.[2]  

“Hermes” é  o nome grego de uma figura mítica  transcendente, um deus conhecido no Egito como  Thot e no mundo romano como Mercúrio, mas que também está ligado ao mistério de Buddha. 

Helena Blavatsky esclarece:

“Thot-Hermes é um nome genérico, como é Enoch (....).  Não é o nome próprio de nenhum homem que tenha vivido,  mas o título genérico de muitos sábios. (....) Eles são todos patronos representativos da Sabedoria Secreta.” [3]

A personalização das inteligências divinas e cósmicas é um antigo recurso poético e simbólico, mas também uma alegoria que, infelizmente, com frequência se transforma em dogma autoritário a serviço das castas sacerdotais. Os sacerdotes geralmente preferem manter os povos na dependência e na ignorância, mas, da sua parte, a ciência esotérica é impessoal, independente de burocracias, e gira em torno das leis do universo. Ela ensina que o caminho da libertação deve ser trilhado individualmente  pelo aprendiz, e que o ato de aprender, para ser eficaz,  exige uma autonomia solidária.

A filosofia hermética é tão velha quanto o hinduísmo, e a sra. Blavatsky escreveu:

“Todas as verdades fundamentais da natureza eram universais na antiguidade, e as idéias básicas sobre espírito, matéria e o universo, ou Deus, Substância e ser humano, eram idênticas. Examinando com base nas escrituras da Índia e do Egito as duas filosofias religiosas mais antigas do globo, o hinduísmo e o hermetismo, vemos que a identidade das duas é facilmente reconhecível.” [4]

Pouco conhecidos em português, os textos herméticos são inspiradores, e vale a pena abandonar os assuntos de curto prazo para poder apreciá-los sem pressa e meditar sobre seu conteúdo, que possui várias camadas de significado.

Regente das ciências ocultas, Hermes Trismegisto – “Hermes o Três Vezes Grande” – era na Grécia antiga um deus agrário que também protegia as estradas e os processos de comunicação.  A compilação do  Corpus Hermeticum  parece ter sido feita no Egito quando este país já fazia parte do império romano. A proposta do Corpus   inclui a idéia de promover a síntese das diferentes religiões e filosofias, e a elevação da consciência humana até o mundo divino, o Logos, a mente universal.  Seu conteúdo é, em grande parte, comum ao pitagorismo e ao platonismo, mas também está ligado aos movimentos gnósticos e ao cristianismo primitivo.  

Como compilação, o Corpus  possui um território em comum com a teosofia eclética de Amônio Sacas de Alexandria e, naturalmente,  com a filosofia de Plotino e Porfírio, discípulos de Amônio.  Quase dois mil anos depois, seu conteúdo e sua visão da vida respondem adequadamente aos desafios enfrentados pelo cidadão da primeira parte do século 21.  Um deles é a ilusão materialista que domina as mentes de milhões de pessoas.  A visão meramente material da vida está na origem da injustiça social, da destruição do meio ambiente, das guerras, do crime, da violência urbana  e da corrupção na política.

Vítimas da premissa materialista, alguns cidadãos explicam a sua situação da seguinte maneira:

“Eu gostaria de estudar filosofias e religiões orientais, mas como posso fazer isso tendo tantas contas por pagar?”

E outros garantem: 

“Minha prioridade pessoal é realmente aprender mais sobre a vida, conhecer a mim mesmo e fazer o bem aos outros. Antes disso, porém, preciso ganhar dinheiro.”  

Este tipo de atitude é frequente mas não é realista. A chave da transição pessoal para os padrões vibratórios da sociedade saudável do futuro está em aceitar aqui e agora a simplicidade e aquela paz interior que é incondicional e não depende de condições externas para acontecer. Isso não significa abandonar as responsabilidades pessoais diante da vida, mas implica fazer um uso correto do tempo.

Corpus Hermeticum fala de uma realidade suprema que está além deste pequeno mundo egoísta, e que, uma vez percebida, nunca mais se esquece.

No décimo texto desta compilação milenar, Hermes diz a seu filho Tat  que a Divindade e o Bem são a essência de tudo o que há, e que nada pode existir sem a vontade divina; porém os seres humanos estão agora numa situação tão precária que o  seu intelecto não pode captar este Bem. E ele explica:

“Só o perceberás quando chegares ao que é indescritível. Este saber é o silêncio  divino, que ultrapassa todos os sentidos. Quem o percebe uma vez já não pode pensar em outra coisa, nem quer ouvir falar de mais nada.  (....)  A beleza terá banhado com luz todo o seu intelecto. Sua alma ficará iluminada e atuará de tal modo sobre o corpo que transformará o homem inteiro.”

Mais adiante, o filho Tat pergunta a Hermes:

“E quem pode conseguir tal coisa?”

Resposta do Mestre:

“Aquele que não se perde pronunciando ou escutando palavras.” [5]

Fica clara, deste modo,  a importância do silêncio interior. E a leitura, como a meditação, é silenciosa.
Cada vez que lemos um texto, ele precisa ser recriado por nós. Ele só ganha significado real quando  interage com nosso mundo psicológico e interno. Somos todos co-autores do que lemos e ouvimos. Este fato é decisivo no aprendizado espiritual. Ele significa que as palavras não podem substituir os fatos e, portanto, não devemos deixar-nos hipnotizar por elas.

Um dos ensinamentos do Corpus Hermeticum elimina um grande medo subconsciente do ser humano.  Trata-se de algo de que muitos já ouviram falar, mas poucos compreenderam: o fato concreto de que a morte para o verdadeiro eu não existe, e constitui apenas “um conceito nascido da ficção”. 

O oitavo tratado hermético ensina:

“Devemos levar em conta que a morte é associada à aniquilação, mas que nada é aniquilado  neste mundo.”

Este princípio hermético corresponde à moderna e científica Lei de Lavoisier, que afirma:  “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.   Ou seja, tudo se recicla constantemente na natureza  e, portanto,  a lei da reencarnação é a lei da reciclagem.  

Helena Blavatsky chama  atenção para o fato de que os textos do Corpus Hermeticum foram em grande parte  “adaptados”  aos dogmas cristãos durante a idade média. [6]   No estado em que chegaram a nós, eles insistem em falar de um “Deus Criador”, um personagem pensante e excessivamente humano,  que manipularia o universo de modo casuísta e conforme seus caprichos.  Com efeito, não faltam ilusões sacerdotais e imagens antropomórficas nas versões disponíveis dos textos herméticos. 

Para a filosofia esotérica,  as divindades ou inteligências cósmicas são plurais e constituem apenas manifestações transcendentes e aspectos da Lei Una. Elas receberam uma aparência pessoal nos contos e mitos populares de todos os povos, e mais tarde, infelizmente, foram  absolutizadas e transformadas em dogmas e deuses pessoais pelas religiões exotéricas.   No tratado número doze, por exemplo, Hermes – ele próprio um dos deuses antigos – refere-se  de modo contraditório à Inteligência Universal como se ela fosse um Deus pessoal e monoteísta.  Porém, basta usar a chave interpretativa e traduzir a palavra “Deus” pela expressão “Inteligência Universal”, para que o texto faça sentido. Hermes pergunta a seu discípulo Tat: 

“Como poderia ser, meu filho, que houvesse algo morto no que é Deus, no que é a imagem do todo? A morte é decadência e destruição.  Pois bem, como podemos admitir que decaia e seja destruído algo do que é  divino e indestrutível? (....)  Os seres humanos não morrem, mas se dissolvem, já que são corpos compostos. Esta dissolução não é a morte, e sim a modificação de um composto.  Se os corpos se dissolvem, não é para que sejam destruídos, mas renovados. Qual é a energia da vida? Não é movimento? Pois bem, o que há de imóvel no mundo? Nada, meu filho.” [7]

Quando definimos  “Deus” como mente universal e entendemos os vários níveis do  universo físico como aspectos externos desta mente,  vemos que os textos herméticos se harmonizam com a filosofia esotérica;  e antecipam, ao lado da teosofia,  as teorias científicas de físicos recentes como Fritjof Capra, Fred Hoyle e David Bohm, além de biólogos como Rupert Sheldrake. [8]

Tat, o  discípulo, pergunta a Hermes no tratado número doze se “Deus”, a mente cósmica,  está presente também no mundo material. O mestre, o mensageiro dos deuses, responde:

“Imagine por um momento, meu filho, que a matéria estivesse fora de Deus. Onde a poderias colocar, fora  Dele? Já dissemos que as energias ativas são parte de Deus. Quem dá vida aos seres vivos? Quem provoca as mudanças? Quando falares de matéria, de corpo ou de  substância, lembra que são energias de Deus; (....) e Deus é o todo. Nada há, no todo, que não seja Deus.”

A Física moderna especula sobre o início e o fim do universo conhecido.

Os buracos negros da astronomia atual absorvem toda matéria e energia que passam por perto deles, lançando-as necessariamente em outra  dimensão, que David Bohm chama de “ordem implícita”.  O paralelo com a filosofia hermética é claro: para Hermes Trismegisto, o universo ocupa um lugar imaterial. 

No tratado número dois, o  discípulo Asclépio pergunta como se pode chamar o lugar em que está o universo: “É um incorpóreo”, responde Hermes. “Um incorpóreo é um intelecto (uma mente) que se move a si mesmo, livre de todo corpo, impassível, intangível, imutável em sua plena estabilidade. Contém a todos os seres, que são como uma irradiação de bem e da verdade.”

O  “incorpóreo” em que está o o universo físico corresponde não só à ordem implícita de David Bohm, mas também ao akasha da tradição oriental, à luz astral ou éter da tradição esotérica ocidental. E também é equivalente ao campo mórfico , conceito criado nos anos 1980 pelo biólogo inglês Rupert Sheldrake. Os nomes mudam mas a  realidade permanece a mesma.

Para os autores que escreveram em nome de Hermes Trismegisto, o universo é oniforme, isto é, tem todas as formas. Ao mesmo tempo – dizem eles no tratado número onze – existe uma forma ideal,incorpórea, que é a origem de todas as formas. Esta realidade sutil e abstrata corresponde igualmente àsidéias ou formas abstratas e arquetípicas de Platão, e aos números de Pitágoras. Platão, como se sabe, foi um pitagórico.

 O nível supremo e último do incorpóreo é o puro espaço infinito, abstrato e universal, que contém todas as coisas mas não se compromete com nenhuma delas,  e que equivale ao conceito oriental deParabrahman.

Estas idéias e realidades são de grande utilidade prática para o cidadão atento do século 21, e isso por um motivo muito simples. Cada ser humano mantém, inevitavelmente, um contato direto com o universo, em todos os seus níveis de sutileza e de densidade,  e obedece sempre  às suas leis, seja consciente ou inconscientemente. 

É sempre possível libertar-nos da escravidão submissa às formas externas, e isso se dá  através da percepção direta da essência incorpórea da vida.

O conceito budista de vazioSunya, entra neste contexto de percepção da realidade maior que está além de maya, a ilusão. Em si mesmo, o mundo físico é “vazio”. A fisica quântica tem demonstrado este fato.   A  verdadeira natureza do mundo é incorpórea e está está no plano sutil e interior.  É apenas a incapacidade de compreender a essência que nos faz ser dogmáticos, teimosos ou inflexíveis. O mundo da energia pura  transcende a forma, e os vários níveis de consciência cósmica são centros de energia sutil. A Lei Universal é o aspecto dinâmico do Princípio Supremo indescritível, a Causa Sem Causa, a fonte primeira das energias que mantêm ativa a Roda da Vida universal.

O que os textos herméticos chamam de Intelecto corresponde à Razão dos gregos, ao Nous, o eu superior, a consciência da alma imortal,  que se expressa racionalmente através do equilíbrio,  da harmonia,  da percepção da verdade e da sua expressão.  

No tratado número doze, o Mestre Hermes ensina:

“Quando a alma  [eu inferior] se deixa conduzir pelo intelecto [eu superior], este a banha com sua luz e se opõe às  suas tendências nocivas.  Do mesmo modo que um médico pode provocar sofrimento tratando da parte danificada quando o corpo está doente, assim também o intelecto   pode provocar dor na alma ao afastá-la do princípio do prazer, do qual surgem todas as doenças anímicas.”

Para a filosofia hermética, as dores humanas − físicas ou emocionais − são uma doença que surge da busca instintiva do prazer.

Quando a alma [emocional] segue a razão ou intelecto  [sede da sabedoria], ela é banhada pela luz da verdade que tudo harmoniza.   Mas ocorre o contrário, quando as almas não conseguem a orientação do intelecto e ficam reduzidas à condição de animais.  Neste caso, a lei divina, isto é, a lei do Carma, irá fazer com que colham o que plantaram, até que compreendam o seu erro e o corrijam na prática.

Para Hermes, a vida superficial é uma corrente imensa de automatismos cegos e reações impensadas que transformam o cidadão ingênuo em objeto e em observador passivo da sua própria vida.  O  mestre faz um apelo à humanidade, cujas massas ingênuas, tomadas pela pressa,  ele compara a um bando de homens inebriados pelo vinho da ignorância.  Ele pergunta, no tratado número sete:

“Para onde correm vocês, bêbados? (....) Recuperem a lucidez e abram os olhos dos seus corações. Se nem todos podem consegui-lo, pelo menos que alguns o tentem. Pois o açoite da ignorância domina a Terra e corrompe a alma aprisionada no corpo. Não se deixem levar pela corrente. Retornem, se puderem, ao porto da boa saúde. Busquem um piloto que os conduza até as portas da gnose, onde brilha uma luz deslumbrante, livre da escuridão, na qual ninguém se embriaga, na qual todos estão sóbrios e dirigem os olhos do coração para aquilo que merece ser contemplado, o inaudito, o inefável, invisível aos olhos físicos, mas visível para a inteligência e o coração.” 

A gnose é o conhecimento direto (interior) das coisas sagradas.

Há evidências de que os cristãos primitivos estavam ligados aos gnósticos, além de serem influenciados pelo budismo. Eles se organizavam em sociedades esotéricas ou semi-esotéricas.  São Paulo, por exemplo, é considerado um iniciado nos mistérios. O objetivo comum de gnósticos, herméticos e cristãos primitivos não era apenas adorar alguma divindade, mas trilhar diretamente o caminho da libertação e vivenciar o mundo sagrado.  “A virtude é a gnose, o conhecimento, porque quem tem conhecimento é bom, piedoso e quase divino”, ensina Hermes no parágrafo nove do décimo tratado.  E no tratado número onze, ele acrescenta:   

“Se tu não te fazes semelhante a Deus, não poderás compreendê-lo, porque só o semelhante pode entender o semelhante”.

“Deus” é a Lei Universal impessoal  que se mostra em pelo menos sete níveis de inteligência cósmica. E “tornar-se semelhante’ à Lei do Universo é algo que exige ir além de todo apego a  coisas pequenas.  Hermes dá outras instruções práticas, em um trecho que faz referência sutil aos mistérios das iniciações:

“Mediante um salto que supere todos os corpos, adquire a condição do que é imenso. Supera todos os tempos, converte-te na própria eternidade! Então poderás compreender Deus [a Lei].  Aceita a idéia de que nada é impossível para ti. Imagina-te imortal e capaz de compreender todas as coisas; toda a arte, toda a ciência, e o interior de todo ser vivo. Sobe até acima da maior altitude. Desce até a mais funda profundidade. Abraça as sensações de tudo o que existe, do fogo e da água, do seco e do úmido,  imaginando que estás em toda parte, sobre a terra, no mar, no céu, e que ainda não nasceste, que estás no ventre materno, que és adolescente, que  estás velho, que morreste e estás já além desta existência. Se dominas com o teu pensamento todas estas coisas simultaneamente, os seus tempos, lugares, substâncias, quantidades e qualidades, então poderás conhecer Deus.”

A Lei do Universo regula todas as coisas e conduz a consciência humana ao mundo divino. À medida que o indivíduo se liberta da ilusão das formas externas, ele aprende a navegar no oceano insondável e sem limites da verdade suprema.  No mundo externo, ele se afasta gradualmente das ilusões teológicas criadas por igrejas. Ele passa a vivenciar pessoalmente uma ética universal que resulta da percepção da sua própria unidade individual com todos os seres. 

Ele sabe que o universo é um ecossistema.  Assumindo responsabilidade por seus atos e por tudo o que lhe acontece, ele abandona a ignorância espiritual para cruzar o portal da gnose , o conhecimento sagrado, a sabedoria divina ou theos-sophia, que o liberta gradualmente  dos ciclos de vida inconsciente.

NOTAS:

[1] “Thrice Geatest Hermes”, de G.R.S. Mead. São  três  volumes publicados em um só, edição fac-similar, Kessinger Publishing Co., EUA, 560 pp.  G.R.S. Mead foi secretário particular de H.P.B. durante alguns anos, até a morte dela em 1891.  Algum tempo mais tarde,  ele afastou-se do movimento teosófico.

[2] Sobre a afirmativa de que os textos atribuídos a Hermes, com exceção da Tábua de Esmeralda, são “recordações vagas”, veja o artigo “Alchemy in  the 19th Century” em “Collected  Writings of H.P. Blavatsky”, TPH, India/USA, 1973, vol. XI, p. 549. Leia também o texto “A Tábua de Esmeralda”, em  www.filosofiaesoterica.com . Link  direto: http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=159 .

[3] “The Secret Doctrine”, Helena Blavatsky, edição facsimilar da edição  original  de 1888,  dois volumes, Theosophy Company, Los Angeles, 1982, volume II, p. 211.

[4] “The Secret Doctrine”, obra citada, volume I, p. 285.

[5] “Tratados del Corpus Hermeticum”,  Hermes Trismegisto, Introducción y Notas de J. García Font, MRA Editorial, Barcelona, 1997, 255 pp., ver pp. 162-165.

[6] “The Secret Doctrine”,  obra citada, volume I, pp. 285, 286 e 287.

[7] “Tratados del Corpus Hermeticum”, obra citada, pp. 145-146 e 203-204. Há outra versão interessante desta obra em espanhol: veja “Corpus Hermeticum”, Hermes Trismegisto, Selección y Notas de Walter Scott, Editorial EDAF, Madrid, 247 pp. A editora Hemus, de S. Paulo, publicou uma edição brasileira preparada por Márcio Pugliesi e Norberto de Paula Lima. Intitulado “Corpus Hermeticum, Discurso de Iniciação”, o volume tem 126 pp.

[8] Veja a este respeito o capítulo 17 do livro “A Vida Secreta da Natureza”, Carlos Cardoso Aveline, terceira edição, 156 pp., Editora  Bodigaya,  Porto Alegre, 2007, 156 pp. (www.bodigaya.com.br ) .  O título do capítulo é “A Ciência Exata Descobre a Ecologia Profunda”. 


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A respeito da tradição hermética e alquímica,  leia o texto “A Tábua de Esmeralda”, de Carlos Cardoso Aveline, neste website. Link: http://www.filosofiaesoterica.com/ler.php?id=159 .

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segunda-feira, 2 de maio de 2011

REUNIÃO RESERVADA COM O DALAI-LAMA




Em Encontro Fechado com
Representantes da Comunidade Budista
Brasileira, em 2006, Líder Tibetano Enfrenta
a Linhagem Ningma e Denuncia o Pseudo-Budismo 



 O XIV Dalai Lama

Separou o Joio do Trigo


Equipe Bodigaya




Nota Editorial:

O texto a seguir é um informe sobre a reunião reservada do XIV Dalai Lama com representantes da comunidade budista brasileira, realizada em abril de 2006, em São Paulo. 

A narrativa transmite uma lição fundamental de coragem e compromisso com a ética e a verdade. Foi publicada inicialmente ainda em 2006,  na edição número 19 da revista budista independente “Bodigaya”, de Porto Alegre, sob o título “O Hábito Não Faz o Monge”.

Na Carta ao leitor, os editores de Bodigaya escrevem:

“ .....Ninguém imaginaria ver Sua Santidade, investida de natural e legítima autoridade, protagonizar a maior repreensão ao comportamento inadequado de líderes budistas jamais vista! Num ato firme e resoluto, com um único precedente ‘bíblico’ (Jesus e os ‘vendilhões do templo’), S.S. o Dalai Lama provou, aos olhos dos presentes, ser exatamente quem é, um líder extraordinário, plenamente atento e consciente do seu papel. Seu discurso impiedoso e ‘cirúrgico’ foi como um médico tentando cortar a carne para drenar o pus instalado. Diante do gesto inusitado, mas compassivo, puro e genuíno, tudo o mais em sua visita, desta feita, ficou relegado a um plano secundário. Seu trabalho de purificação deste mundo inclui, claramente, até mesmo os ‘aspirantes a mestres’ budistas. Não podíamos deixar de levar ao conhecimento público um ato cuja importância é histórica, além de extremamente providencial e transcendente.” (p. 01)

Na abertura do informe sobre a reunião reservada com o Dalai Lama, a Equipe Bodigaya afirma:

“Diante da crise espiritual mundial, S.S. o Dalai Lama demonstrou liderança, clareza de visão, condenando comportamentos indecentes praticados por líderes budistas brasileiros. Por serem aspectos extremamente difíceis de serem identificados e enfrentados, precisamos todos aprender a reconhecê-los, a fim de aplicar os antídotos necessários à sua erradicação.” (p. 38)

O informe de “Bodigaya” narra um enfrentamento direto entre o Dalai Lama e membros da linhagem Ningma.  Desde o ponto de vista teosófico, é importante lembrar o que Helena Blavatsky escreveu sobre esta linhagem, que combina o budismo anterior à reforma ética de Tsong-Kha-pa com a feitiçaria local do Tibete antigo, que não leva em conta  preocupações éticas.  No seu texto “Reincarnations in Tibet” (“Reencarnações no Tibete”), publicado em 1882,  a Sra. Blavatsky escreve:

“Os ‘Dug-pa’ ou ‘Gorros Vermelhos’ pertencem à velha seita Ningma-pa, que se resistiu a aceitar a reforma introduzida por Tsong-Kha-pa na parte final do século catorze e início do século quinze.”

E, numa nota de pé de página, ela acrescenta:

“O termo ‘Dug-pa’ no Tibete é pejorativo. Eles próprios pronunciam a palavra como ‘Dög-pa’, cuja raiz significa ‘unir’ (aqueles que estão unidos à fé antiga) ; enquanto que a seita suprema do Tibete, os Gelug-pas (gorros amarelos), e o povo, usam a palavra no sentido de ‘Dug-pa’, causadores de confusão,  feiticeiros.” [1]

Estas palavras foram escritas no século 19.  Em pleno século 21, o testemunho de budistas independentes ligados à revista “Bodigaya” mostra, em primeira mão, um episódio vivo de um enfrentamento de 700 anos.  Local, São Paulo. Data, 2006. De um lado, o budismo reformado dos Dalai Lamas, que pertencem à linhagem ética dos Gelug-pa. De outro lado os dug-pas, ou Ningma-pa, da linhagem “vermelha” anterior à reforma do budismo tibetano. 

(Um Estudante de Teosofia)

NOTA:
[1] “Collected Writings of H.P. Blavatsky”, TPH, coletânea em 15 volumes; ver volume IV, pp. 9-10,  artigo “Reincarnations in Tibet”.

Reunião Reservada Com o Dalai Lama

Equipe Bodigaya

Vamos tentar apresentar os pontos que nos pareceram mais representativos do encontro reservado junto ao hotel onde Sua Santidade foi hospedada, em São Paulo.

Tenha o leitor em mente que esta foi a terceira visita oficial do Dalai Lama ao Brasil. Desde 1992, ele acompanhou o gradual desenvolvimento de centros budistas, comunidades de praticantes (sanghas) e a transmissão dos ensinamentos, nestes cerca de 15 anos.

Um outro ponto digno de nota, ocorrido nos dias anteriores à reunião secreta, foco deste artigo, foi o fato de, pela primeira vez, os budistas “leigos” terem tido acesso ao palco, junto aos membros “ordenados”. Dispostos numa certa hierarquia, lamas, mestres zen, mestres chan, entre outros, sentavam em primeiro plano, bem na frente da cadeira reservada para o Dalai Lama; depois vinham os leigos (chamados, também, de “professores do Darma”) seguidos pelos respectivos representantes oficiais das Entidades Anfitriãs, que auxiliaram durante toda a preparação e organização do evento, compondo o Comitê que tratou de todos os aspectos da visita. A identificação “exterior” era nítida, por conta das diferentes vestimentas coloridas, algumas chamativas, pois todos os centros, tibetanos, zen, chan, etc., estavam – especialmente na palestra de abertura, no Templo Zu Lai – devidamente paramentados. Ali, especialmente, Sua Santidade deparou-se com muitas roupagens distintas.

Nesta ocasião, muito sorridente, como sempre, ele dirigiu seu olhar para cada pessoa, sem deixar escapar ninguém. Havia lamas com mantos vermelhos, recobertos com “sobremantos” brancos, listados em bordô; as tradicionais roupas negras do zen, o manto amarelo dos chineses, etc., num colorido muito vivo pelo sol abrasador daquela magnífica quinta-feira.

O Dalai Lama brincou, riu e coçou muito a cabeça enquanto manifestava a energia e a força da sua presença. O discurso desta primeira apresentação cobriu desde uma rápida introdução ao budismo e seus elementos, até o exame superficial da vacuidade. S. S. foi extremamente hábil em sua colocação, dizendo que os tibetanos deviam todo respeito aos chineses, pois eles eram budistas há muito mais tempo que os tibetanos. Depois, com sua natural sabedoria, discorreu sobre a necessidade de se compreender que o “inimigo”, de fato, é um elemento necessário ao nosso crescimento e aperfeiçoamento. Asseverou que:

“...Nosso inimigo nunca está muito distante. É difícil que alguém do outro lado do globo possa ser um inimigo real, pois está longe demais... Em geral, nosso inimigo está bem perto, muito próximo mesmo (às vezes dentro da nossa própria casa, rua ou comunidade)... Na verdade, devido a essa proximidade, ele(a) é alguém que compartilha conosco de um futuro comum. O nosso futuro, portanto, depende do futuro do nosso inimigo. Logo, precisamos aprender a respeitá-lo, a compreendê-lo, a dialogar franca e sinceramente com ele, pois somente assim poderemos construir um bom futuro comum. Se pudermos compreender profundamente essa nossa condição mútua, inseparável, além de respeitar e cuidar bem daquele que consideramos ser um inimigo, nós aprenderemos, quem sabe, a amar o nosso inimigo. Ou seja, na verdade, deixaríamos de ser inimigos, pois ganharíamos, na verdade, um novo amigo!” (risos e muitos aplausos)

Em um certo momento, observando as pessoas no palco, S. S. disse que os leigos, historicamente, foram menosprezados, tratados com desdém, ou até com um certo preconceito (velado) pelos ordenados, como se fossem algo inferiores. Corrigiu isso, dizendo que sem eles, os ordenados não subsistiriam, pois são sustentados pelos leigos. Demonstrou enorme consideração pelos leigos e afirmou, surpreendentemente, serem os leigos, talvez, o melhor veículo para transmissão do Darma, especialmente no Ocidente.

Na sexta-feira, S.S. palestrou no Centro de Convenções do Anhembi, repartindo a palavra com professores da Unifesp, especialmente do Departamento de Medicina, pois o tema proposto para a discussão era a Saúde. Novamente, S.S. encantou os presentes com respostas tão simples quanto sábias.

No sábado, pela manhã, houve a palestra pública no ginásio do parque Ibirapuera. Um público animado lotou completamente o recinto e o Dalai Lama estava particularmente inspirado. Ao entrar, foi aplaudido longamente. Ficamos nos perguntando em que outro país do mundo S. S. ouviria de um vasto grupo feminino os gritos: “Lindo! Lindo! Lindo!”

Curioso, perguntou o que diziam e, quando foi esclarecido pelo assessor, achou muita graça. Então, acomodou-se na poltrona, olhou em volta e queixou-se, simpaticamente, da iluminação, muito focada sobre ele, dizendo que não conseguia ver as pessoas ali presentes. Afirmou que sempre prefere olhar o rosto das pessoas com quem está conversando. Do jeito que estava escuro na platéia, ouvindo o rugido e burburinho do povo, jocosamente, afirmou: “é como falar com um tipo de fantasma gigante!” (muitos risos, aplausos). Provocou ainda mais risos, por singelamente retirar seus óculos comuns e pôr um par de lentes escuras, a fim de proteger-se da forte iluminação que recaía sobre si.

O tema desta apresentação foi sobre “O Poder da Compaixão”, o preferido de S.S.  Talvez esta tenha sido a mais brilhante e tocante palestra do Dalai Lama em São Paulo, tratando-se de uma apresentação relativamente curta, voltada para um público abrangente. Suas colocações foram intensas, absolutamente claras, levando o público a uma experiência espiritual inesquecível. Garantiu que o maior bem é a “paz mental”, pois isso nos mantém saudáveis  e felizes, mas, “para alcançá-la, o único caminho é o da Compaixão”. Pessoas emocionadas, com olhos marejados, aplaudiram de pé este ser humano absolutamente incomum. Mais do que suas palavras, elas viram alguém que corporifica a Compaixão. Às vezes, ouvimos alguém comentar: “como eu gostaria de ter ouvido Jesus ou Buda em pessoa, na época em que viveram...”.

Bem, todas as pessoas presentes naquele estádio, naquele dia, certamente, sentiram como se estivessem realizando um tal desejo. O Dalai Lama aqueceu e preencheu o coração dos ouvintes de um modo muito profundo. Foi um discurso repleto de um amor, humildade, sabedoria e otimismo, digno dos maiores seres humanos que já viveram sobre este planeta em todos os tempos.

Depois desta necessária introdução, para situar o leitor dentro do contexto mais geral do evento, voltemos aos acontecimentos ocorridos no Hotel, na “fatídica reunião secreta” com a sangha budista brasileira. Chegado o precioso e derradeiro momento do encontro – depois de alguma confusão provocada pelo número de pessoas ter se tornado, de uma hora para a outra, bem maior do que o de convidados –, o contingente humano foi dividido em seis grupos menores, com cerca de 30 indivíduos cada, praticamente de acordo com a procedência e linhagem de cada um. Todos os seis grupos foram posicionados contra a parede do corredor do segundo andar do Hotel, cada grupo com uma cadeira vazia, para que, depois de falar, S.S. pudesse sentar-se rapidamente para tirar uma foto de lembrança. O corredor é extremamente largo, talvez com cerca de seis metros de largura por uns cinqüenta metros de profundidade. Sem cadeiras, todos aguardavam de pé. Nós, da equipe Bodigaya, ficamos no último grupo, dos leigos, bem ao fundo do corredor, portanto, tínhamos uma visão privilegiada de tudo o que pudesse acontecer naquela comprida e ampla passagem. Podia-se sentir a tensão e ansiedade eletrizando o ambiente enquanto todos aguardavam o seu maior líder e representante mundial. Finalmente, depois de averiguadas as condições e a segurança por “batedores”, que se espalharam e se postaram estrategicamente pelo local, Sua Santidade finalmente “apontou” na entrada principal do corredor...

Neste exato instante, um dos grupos, seguidor da linhagem Ningma, situado aproximadamente no meio do corredor, começou a entoar o mantra de longa vida ao Dalai Lama. Eles cantavam em voz alta e forte, enquanto S.S., sempre muito sorridente, foi entrando, passos firmes e decididos, corredor adentro, até ficar localizado mais ou menos ao centro, na verdade, um pouco mais para o fundo...  onde estancou, muito próximo de nossa equipe, e recostou-se no balcão comprido que havia ali, perto da parede oposta do corredor. Sorrindo, ouvindo o cântico entusiasmado que lamas e seus acompanhantes emitiam efusivamente, o Dalai Lama ergueu as duas mãos espalmadas à frente, fazendo movimento oscilante para que aquelas pessoas, situadas quase exatamente à sua frente, parassem...

Contudo, apesar do gesto feito pelo Dalai, o grupo, solene e respeitosamente recurvado, com pessoas paramentadas com mantos e sobremantos, munidas de malas (espécie de rosário) nas mãos em prece, palma com palma, não cessou com a cantoria; apenas abaixou o volume da fervorosa recitação. Novamente, S. S. ergueu as mãos, sacudindo-as para que parassem com aquilo. E, então, o volume do canto abaixou ainda mais, todavia, não cessou completamente...

Prezado leitor, o que aconteceu daqui por diante só poderia ser melhor absorvido e compreendido se você estivesse realmente lá, mas vamos tentar resumir, em alguns pontos, o que lá se sucedeu, senão vejamos:

1. Sua Santidade o Dalai Lama verdadeiramente soltou um grito, dizendo (num inglês absolutamente claro, mas aqui, obviamente, já traduzido por nós): “Calem-se!!!” E riu alto, magnânimo, em meio a um silêncio ensurdecedor que se seguiu, pois o grupo jamais esperaria uma atitude como aquela, vinda de quem vinha... Foi um “cala a boca!” contundente, e o silêncio instalou-se quase por um susto, um verdadeiro “choque” repentino da audiência. O grupo engoliu o mantra em seco, ficando com um sorriso “amarelo-histriônico” estampado no rosto. Com aquela introdução, de fato, muito constrangedora, mas verdadeira, o “tom da conversa” havia sido inequivocamente apresentado. Todos estavam ali, contra-a-parede, perfilados assim como num “pelotão de fuzilamento”... E quem estava ali, fazendo uso das palavras como uma arma eficaz e certeira, era exatamente ele, o Dalai Lama.

2. Iniciando por este imponente “Calem-se!!!”, Sua Santidade fez uma breve digressão. Disse que, no templo Zu Lai, viu um desfile de muitas vestimentas: “Havia roupas tibetanas, roupas chinesas, roupas japonesas, tailandesas, entre outras. Havia até roupas normais, de ocidentais... Porém, algumas roupas que havia lá, pareceram-me ser, na verdade, de outro planeta!” (muitos  risos, risos amarelos, vermelhos, azuis, pretos...). “Penso que havia ali roupas até de ETs!” E riu muito alto, no que não conseguimos nos conter, apesar do constrangimento que sentíamos pelo que aquelas duras palavras significavam... Sua Santidade olhava nos olhos de cada um dos lamas e, quando se referiu a “roupas de ETs”, encarou uma pessoa específica. Imaginamos, imediatamente, que o Dalai Lama conheça praticamente todas as roupas monásticas existentes em cada templo do mundo inteiro e, talvez, tivesse percebido, nos trajes muito chamativos daquele indivíduo, algo ainda sem correspondência no universo
de vestimentas de grupos reconhecidos fora do Brasil... A força de sua presença
e coragem foi impressionante. Ninguém conseguia esboçar qualquer intervenção ou comentário. Na verdade, aquelas palavras eram mais um susto estupendo. O que viria a seguir? Muito mais do que se poderia imaginar...

3. O Dalai Lama mudou um pouco o tom irônico para um pronunciamento esmagador, uma lição absolutamente memorável: “Vocês são ocidentais e mudaram suas roupas. (referindo-se aos mantos, saias e sobremantos dos brasileiros ali presentes). Mudaram até a mobília da casa de vocês. Vocês acham que o Darma está nas roupas ou na mobília, nos adornos de suas casas? (Estão enganados)... O Darma não está nas roupas, mas no coração e na mente” ... E riu alto novamente... A “atmosfera” do ambiente ficou absurda. Os lamas, bem na frente de Sua Santidade estavam paralisados, sem face, exibindo um “sorriso amarelo-aterrorizado”, indescritível. Davam a impressão de quererem ser teletransportados dali, mas não podiam simplesmente desaparecer, fugir, correr ou recuar, pois estavam presos no cordão de fuzilamento, sob os olhos atentos de um Dalai Lama ao mesmo tempo implacável e totalmente amoroso. Isso o que mais nos impressionava. Assistíamos à capacidade extrema de apontar e cravar a espada com precisão e veemência absoluta, mas sem intenção de causar dano. Não havia ódio no gesto hábil, quase leve, ainda que parecesse pesar toneladas pela dor que causava. O golpe excruciante tentava apenas eviscerar e fazer vazar o pus abjeto, encarcerado num abcesso maduro que apodreceria tudo o que ainda pudesse restar são... A impressão que tivemos foi de um Dalai Lama gigantesco, com mil metros de altura, e os líderes todos ali, bem na sua frente, como pigmeus, tentando entrar para dentro dos próprios sapatos a fim de se esconderem apavorados. Mas, como isso também não era possível, jaziam ali indefesos, a mercê de uma autoridade e poder superiores. Imagine o leitor que Sua Santidade, em pessoa, teve de lembrá-los disso! Dizer-lhes isso com cada letra e palavra. Está escrito no Dhammapada: “O hábito não faz o monge.” (Nem o canto de mantras!) Mas, quem, então, segue verdadeiramente o Darma? Só com esta atitude e clara intervenção, para quantos questionamentos nos remeteu Sua Santidade! Não ficou por aí, sigamos adiante:

4. Sua Santidade fez um breve comentário sobre ter-se alguma consideração pela cultura tibetana, mas que, “se há alguém que deve tentar preservar a cultura tibetana, são os tibetanos!” Se alguém deve preservar a cultura chinesa, são os chineses... e assim por diante... Querendo, talvez, no fundo, perguntar: e vocês, o que fazem com estas roupas de uma cultura exótica? Quem irá preservar a cultura de vocês? Deu a entender que mudar externamente, não transformava nada de fato e que eles jamais seriam tibetanos por usar roupas tibetanas.

5. Então, Sua Santidade deu o exemplo fortíssimo, discorrendo sobre o quão é difícil transformarmos a nós mesmos: afirmou que o Buda havia levado “três eons” (eras intermináveis) para iluminar-se. Reconhecido aos quatro anos de idade, levado ao contexto monástico, ele foi conduzido por muitos mestres, ao longo de muitas práticas, mas que ele mesmo praticava com maior consciência de sua condição desde os 16 anos, quando acredita ter entendido um pouco do significado de alguns ensinamentos e havia se tornado muito clara e nítida a sua condição de chefe de estado. “Estou agora com 70 anos...”, meditando cerca de nove horas diárias, desde essa idade, “e só consegui me transformar um tanto assim...” (mostrou os dedos polegar e indicador grudados um no outro). Ou seja, mesmo Sua Santidade, com todo o seu esforço, empenho, vida dedicada, como um monge que preza seus votos e práticas, havia conseguido avançar muito pouco. Esta afirmação, por si só, demonstra a envergadura da plena consciência e humildade dessa pessoa incomum.

6. Então, Sua Santidade desfere mais um golpe certeiro: ”Vocês fazem um retiro de três anos... e alguns fazem um workshop budista de um final de semana, e já se consideram transformados, espiritualmente elevados e até iluminados! Isso é loucura!” E ria alto, disparando seu olhar sobre todos. Desta feita, foi como prensar os ossos dos muitos orgulhos e vaidades presentes. Mas não parou tão logo, parecia saber que havia ossos ainda mais resistentes para serem moídos:

7. Sem retroceder um milímetro, indo em frente, Sua Santidade calou ainda mais fundo: “Vocês fazem rituais, retiros rituais de um mês, cantando mantras para Manjurshri, por exemplo, e pensam que já transformaram todas as suas negatividades. Então, depois disso, alguns já se autodenominam gurus!” E ria-se muito mesmo, como se quisesse assoprar a ferida recém-aberta... Assim que a dor parecia ter reduzido um pouco, que o grupo havia tomado um pouco de ar, Sua Santidade batia forte de novo:

8.“Vocês fariam muito melhor se, ao invés de ficar em repetindo rituais (vazios), ou
permanecer por um mês cantando mantras, utilizassem esse mês estudando o Darma!” E ria assustadoramente. Na prática, suas palavras significavam diretamente: vocês não sabem nada e se arvoram de lamas, mestres, gurus iluminados e etc. Isso é uma grave loucura! Ninguém mais do que Sua Santidade tem consciência do quanto uma pseudo ou falsa liderança, ou pior, uma liderança despreparada, confusa, pode gerar em termos de negatividades. Mas não foi em tom de ameaça ou chantagem: foi lúcido, brilhante como o sol nascente fazendo desaparecer as trevas da madrugada com sua presença esclarecida. Estudar o Darma é trabalho interminável, de toda a vida, pois ele é vasto e profundo. Então, Sua Santidade escolheu atacar outro tema fundamental:

9. “Outro dia, nos EUA, uma pessoa se aproximou de mim e perguntou: ‘S. S. como
eu posso me aproximar do budismo tibetano se, há algum tempo, fui com minha esposa a um centro onde um certo lama ensinava e ele foi tão sedutor que minha mulher abandonou minha família para ir viver com o lama?’   E S. S. perguntou: “Vocês acham que isso é ser lama? Ser lama é para obter favores sexuais, para alcançar reconhecimento,  fama? Para muitos, é apenas uma questão de ganhar dinheiro! Há empresários inescrupulosos se utilizando do Darma para, simplesmente, fazer dinheiro!”  E ria alto e mais alto...

10. Abrandando um pouco o tom, já que havia exposto a chaga a céu aberto, diante de uma audiência que parecia anestesiada de tantas observações contundentes, S.S. falou sobre o quanto é custoso mudar, transformar-se internamente. Mas, deixou claro: “Mudar externamente não significa nada. É perda de tempo.” Falou que “fingir” ser o que não se é não leva a lugar algum, pois nada é alcançado assim... A não ser os benefícios secundários de ser alvo de atenções, consideração, respeito e outros benefícios econômicos que não vêm ao caso mencionar, mas são evidentes.

Sua Santidade falou também sobre a arrogância, a soberba, a superioridade, dizendo que estes eram obstáculos sérios, impeditivos do prosseguimento no caminho. Então defendeu que, para o Ocidente, a perspectiva leiga e não-religiosa talvez fosse a melhor e mais adequada para a transmissão do budismo. Repetindo suas palavras já ditas no Templo Zu Lai, ao observar a presença de leigos sentados nas almofadas no palco, que os leigos sempre foram discriminados e que isto era totalmente injusto e sem sentido.

11. Depois de outros comentários, Sua Santidade definitivamente abrandou suas palavras, falando seriamente da atual condição do seu país, o Tibete, ainda nas mãos dos chineses. Concluiu ser melhor que Tibete fique mesmo com os chineses, pois estão modernizando o país, coisa que os tibetanos não poderiam proporcionar ao povo. Observou, porém, que isso deveria ser feito com garantias de direitos aos cidadãos, com respeito às diferentes etnias, direitos iguais preservados, constituição, democracia e etc.

12. Finalmente, agradeceu a todos que trabalharam e colaboraram com tudo. Muitos aplausos,  suspiros e Sua Santidade foi sentar-se, rapidamente, na cadeira de cada grupo, para as respectivas fotos.

Talvez não signifique absolutamente nada, mas, quando saímos por uma porta dos fundos, aberta por um funcionário enquanto os demais grupos tiravam fotos com o Dalai Lama, seguimos por ali, sem saber onde sairíamos e, para nossa surpresa, encontramo-nos novamente com S.S. já deixando o hotel. Ele sorriu para nós, despedimo-nos com acenos de mão e muita felicidade.

Em sua muito provável última visita ao Brasil, Sua Santidade nos fez ficar de espírito leve, solto, como se tudo estivesse em paz e em seu devido lugar.

Foi uma lição forte e inesquecível. Todos nós passaremos a respeitar profundamente os lamas e mestres que seguirem os conselhos expressos por Sua Santidade neste encontro tão histórico e memorável quanto enriquecedor.

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