quarta-feira, 30 de março de 2011

Marco Aurélio, o Imperador-Filósofo

Um Capítulo da Obra “Conversas na Biblioteca
 
 
Carlos Cardoso Aveline
 
 
 
 
 
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Reproduzimos a seguir o capítulo seis
da obra “Conversas na Biblioteca –
Um Diálogo de 25 Séculos”, de Carlos
Cardoso Aveline (Edifurb, 2007, 170 pp.)
Visite o website www.furb.br/editora .
 
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Marco Aurélio Antonino (121 d.C.-180 d.C.) foi imperador romano durante quase duas décadas. Considerado o mais sábio dos dirigentes políticos da antigüidade ocidental, ele governou de 161 a 180 e ficou conhecido como o imperador-filósofo.
 
Combinando a busca da sabedoria com um espírito prático, Marco Aurélio soube desenvolver o desapego enquanto cumpria os seus deveres perante o mundo. Taurino nascido a 26 de abril, o imperador tinha persistência. Influenciado pelo filósofo Epicteto, ele baseou sua filosofia de vida na aceitação da impermanência das coisas e na disciplina da indiferença em relação a dor e prazer.
 
A leitura de um bom livro pode ser um diálogo vivo, porque o leitor atento interage com os padrões de vibração mental do autor e sua consciência é guiada pelos ritmos da emoção e do pensamento presentes no texto que lê. Por isso, a presença espiritual do imperador-filósofo pode ser percebida como algo vivo por qualquer pessoa que seguir as ondas de pensamento registradas nos textos do volume intituladoMeditações. A obra reúne suas reflexões pessoais sobre o caminho da sabedoria. O texto não foi redigido para publicação, mas registra sua luta consigo mesmo na busca do auto-aperfeiçoamento. Passados mais de 18 séculos, as Meditações de Marco Aurélio continuam inspirando milhões de leitores ao redor do planeta.
 
1) Uma base essencial da sua filosofia e sua ética é a constatação da unidade de todas as coisas.  Nada existe separado, nada fica escondido muito tempo, e por isso é aconselhável agir sempre corretamente. Mas como colocar esses princípios em prática? 
 
R: O importante é estabelecer primeiramente que sou parte de um Todo regido por uma natureza e, posteriormente, que, de algum modo, sou parente das outras partes que a mim se assemelham. Certamente, observando estes princípios, como parte que sou, não me revoltarei contra nenhuma das vicissitudes que o Todo me reservar, pois nada incomoda a parte quando é útil ao Todo, e nada há no Todo que não lhe seja útil. Não me esquecendo de que sou parte do Todo, acolherei de boa vontade todos os acontecimentos. Sendo, de alguma forma, parente das partes semelhantes a mim, procurarei nada fazer que possa prejudicar a sociedade. Antes pelo contrário, tendo sempre em vista o meu próximo, consagrarei minha atividade ao bem comum e me absterei de tudo que provoque dano para o próximo. Procedendo dessa forma, minha vida será obviamente feliz. 
 
2) Correto. A percepção da unidade dinâmica que existe entre todos os seres é a fonte mais eficaz dos sentimentos éticos. No entanto, nem todos percebem as vantagens de agir com sabedoria, e  ainda há muita violência e crueldade no mundo.  Como funciona o círculo vicioso do egocentrismo? 
 
R: A aranha orgulha-se de apanhar moscas. Um homem, de apanhar lebres, tal outro, sardinhas na rede, este, um javali, esse, um urso, aquele, alguns sármatas [guerreiros germânicos, contra os quais os soldados de Marco Aurélio combateram várias vezes]. Estudados os princípios que os norteiam, não poderiam, todos eles, ser qualificados como assassinos?
 
3) E como podemos viver corretamente em meio a esse mundo?
 
R: Cria um método para entender como todas as coisas se transformam umas nas outras. Com muita constância, dedica-te a essa parte da filosofia, especializa-te nela, já que nenhuma outra eleva tanto a alma. Para aquele que se dedica a ela, é como se ele se libertasse do corpo. E, considerando que em breve terá de deixar tudo e sair de entre os homens, ele não deve preocupar-se com nada, exceto submeter-se à justiça e à natureza do Todo, em tudo quanto faz e recebe. O que dele disserem e supuserem, e o que lhe fizerem, não lhe preocupa o espírito, ao qual só importa o seguinte: realizar com justiça o que agora lhe compete fazer, e amar o que agora lhe acontece. 
 
4) A filosofia estóica ensina a ser imperturbável diante das oscilações da vida. Mas há obstáculos enormes para isso. Estamos sujeitos a inúmeras pressões externas. Nossos parentes, colegas de trabalho, amigos e conhecidos fazem exigências e nos influenciam o tempo todo. 
 
R: De manhã cedo, dize logo a ti mesmo: “Encontrarei um indiscreto, um ingrato, um arrogante, um trapaceiro, um invejoso, um egoísta. Tudo isso lhes advém da ignorância do bem e do mal. Mas eu, tendo reconhecido que a natureza do bem é a virtude e a do mal é o vício, e que o pecador é por natureza meu parente - não do mesmo sangue ou semente, mas pela inteligência e por participar de uma parcela da divindade - não posso considerar-me ultrajado por qualquer um deles. Nenhum deles me contaminaria com o vício. Não posso tampouco irritar-me contra meu parente nem odiá-lo; pois fomos feitos para cooperar, assim como os pés, como as mãos, como as pálpebras, como as fileiras superior e inferior dos dentes. Agir como adversário é, então, contra a natureza. E é ser adversário irritar-se com os outros e evitá-los.
 
5) Você é conhecido por ter exercitado a chamada ‘prática da presença sagrada’.  De que modo podemos conviver diretamente com o mundo divino?
 
Viver com os deuses! Vive com os deuses aquele que mostra constantemente a eles que sua alma está satisfeita com o que lhe foi aquinhoado e que sua alma satisfaz todos os desejos do Gênio [1] que Zeus deu a cada homem para seu guardião e guia, uma parcela do próprio Zeus. E este Gênio é o espírito e a razão de cada um.
 
6) Ser feliz parece ser um objetivo natural, não só dos seres humanos,  mas de todo ser vivo.  Plotino, o filósofo neoplatônico, escreveu que até mesmo as plantas buscam a felicidade.  De que modo alguém pode alcançá-la, na prática? 
 
Se concentras teus esforços no presente, seguindo a  reta razão seriamente, vigorosamente, calmamente, sem permitir que nada mais te distraia e mantendo puro teu Gênio interior, como se tivesses de devolvê-lo imediatamente; se te aplicares a isso, nada esperando, nada temendo e satisfeito com tua atividade presente conforme a natureza e com uma verdade heróica em cada verdade e manifestação, viverás feliz.  E ninguém será capaz de impedir isso.
 
7) Para viver a paz interior é necessário viver retirado e longe da agitação do mundo?
 
Os homens buscam retiros para si em casas no campo, na beira do mar, e nas montanhas; e tu  também tens desejado intensamente estas coisas. Mas esta é a marca do tipo mais comum de homens; porque está em teu poder, sempre que quiseres, retirar-te para dentro de ti mesmo.  O homem não pode retirar-se para nenhum lugar em que encontre mais paz ou esteja mais livre de problemas do que quando se retira para dentro de sua própria alma, especialmente quando ele tem dentro de si um tipo de pensamentos que, quando olha para eles, ele alcança imediatamente uma perfeita tranqüilidade. E eu afirmo que a tranqüilidade não é nada mais que a boa ordenação da mente.
 
Dá a ti mesmo constantemente este retiro, pois, e renova-te; e que os teus princípios sejam breves e fundamentais, de modo que, assim que tu recorras a eles, serão suficientes para purificar tua alma completamente, e para libertar-te novamente de todo descontentamento com as coisas.  Porque, com que estás descontente? Com a maldade dos homens? Lembra desta conclusão, a de que os animais racionais existem uns para os outros, que ter resistência é parte da justiça, e que os homens erram involuntariamente; e lembra de quantos, por causa de mútua inimizade, suspeita, ódio e lutas, já foram mortos e reduzidos a cinzas; e fica quieto.
 
Mas talvez tu estejas insatisfeito com aquilo que o universo coloca a teu alcance. Lembra então desta alternativa; ou há uma providência, ou há átomos, uma sucessão casual de coisas; ou lembra os argumentos pelos quais foi provado que o universo é uma espécie de comunidade política, e fica quieto.
 
Mas talvez as coisas materiais ainda tenham poder sobre ti. Considera então que a mente não se mistura com a respiração, seja em movimento calmo ou violento, uma vez que ela se retirou à parte e descobriu seu próprio poder; e pensa também no que tens ouvido e aceitado sobre dor e prazer, e fica quieto.
 
Mas talvez o desejo dessa coisa chamada fama te atormente. Vê como tudo é rapidamente esquecido, e olha para a névoa do tempo infinito de cada lado do tempo presente, e o caráter vazio do aplauso, e a mutabilidade e ausência de critério por parte daqueles que fingem elogiar, e a estreiteza do espaço dentro do qual o elogio está limitado, e fica quieto. Porque toda a Terra é um ponto, e como é pequeno este recanto em que vives, e como são poucos os que vivem nele, e que tipo de gente é que está te elogiando.
 
Isso, então, é o que permanece: lembra-te de fazer o teu retiro dentro deste teu pequeno território próprio, e sobretudo não te distraias nem fiques tenso, mas permanece livre, e olha para as coisas como um homem,  como um ser humano, como um cidadão, como um mortal.
 
 
NOTA:
 
[1] “Gênio”, aqui, significa a alma imortal, o eu superior, a mônada. Na religião romana, Gênio era o espírito protetor de cada homem, e Juno o espírito protetor de cada mulher.
 
Nota Bibliográfica:
 
As respostas acima foram tiradas da obra Meditações, de Marco Aurélio, da qual há pelo menos duas edições disponíveis em língua portuguesa.
 
Eis as fontes exatas: 1) Item seis do Livro décimo, p. 98 na edição da Ed. Martin Claret, SP, 2002, 127 pp. 2) Item 10 do Livro décimo, p. 100, na edição de Martin Claret. 3) Item 11 do Livro décimo, p. 100, também na edição de Martin Claret.  4)  Livro II, item 01, p.30, de Meditações,  na edição da coleção Clássicos de Bolso, Ediouro, RJ, 140 pp. 5) Livro V, item 27, p. 61, na edição da Ediouro.  6) Livro III, item 12, p. 41, na edição da Ediouro. 7) Meditations, Marcus Aurelius, Book IV, item 3, Encyclopaedia Britannica, “Great Books of the Western World”, volume 12, 310 pp., 1978, ver p. 263.
 
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domingo, 6 de março de 2011

Além da Dor e do Prazer

Como Trilhar o Caminho da
Felicidade Segundo a Filosofia Estóica
 
 
Carlos Cardoso Aveline

A primeira nobre verdade do budismo é correta:
 
“A vida causa sofrimento”.
 
Porém, quanta dor é necessária para viver?
 
Esta questão está sempre em aberto, porque depende da atitude de cada um a todo momento. A arte de viver ensina a transmutar a aflição em sabedoria, e torna possível uma  satisfação duradoura em relação a si mesmo, aos outros e à vida.
O cidadão comum perde muita energia fugindo da dor ou buscando anestesia psicológica. Rádio, televisão, e outras formas de “diversão” ajudam, literalmente, a “passar o tempo”, como se o tempo não tivesse valor e pudesse ser jogado fora.  Formas inúteis de lazer entorpecem o cidadão e desviam sua mente das questões centrais da vida.  Mas o velho dilema entre dor e fuga da dor deve ser olhado com calma.  

Quando a dor é exagerada e vista como algo central, podemos querer fugir dela por meio de algum dogma ou algum salvador, ou fechar os olhos através do refúgio na comodidade fácil,  o que causa mais sofrimento. Podemos desenvolver uma espiritualidade mecânica e supersticiosa, ou cair no outro extremo, optando por um materialismo igualmente destituído de bom senso.  

O falso abismo entre prazer e sofrimento faz com que o caminho da sabedoria seja pouco compreendido e que seja  encarado de modo contraditório.  De um lado, a espiritualidade é descrita como o melhor modo de alcançar a felicidade, a bem-aventurança e o bem-estar permanente. De outro lado, ela é descrita como o caminho da cruz, do sofrimento e do sacrifício.
Onde está a verdade?

O primeiro efeito prático da caminhada espiritual é que começamos a pensar mais profundamente sobre a vida. O nosso discernimento aumenta, e vemos o resultado desagradável dos prazeres promovidos pela sociedade de consumo. Eis alguns exemplos do que percebemos:
 
* O alcoolismo gera insensibilidade e violência.

* Comer demasiado, ou inadequadamente, é prejudicial.  

* A alimentação carnívora não faz bem à saúde.

* Cigarro causa diversas doenças.
 
*  Uma vida emocional impensada tem diversas e graves contra-indicações.

* Os sentimentos de ódio e inveja ameaçam o bem-estar físico, emocional e mental.

* A prática da mentira, seja ela dita para os outros ou para nós próprios (e mesmo que seja bondosa e “espiritual”), acaba gerando um mundo psicológico confuso, sobre o qual nada se pode construir de duradouro.
 

A ética e a moderação surgem como porto seguro em nossa vida quando temos a coragem necessárias para observar como funciona a lei da causa e do efeito. Mas o que acontece se, ao contrário, alguém vê as recomendações éticas como mandamentos dogmáticos e as obedece de modo mecânico e supersticioso, como se fosse membro de um rebanho de ovelhas e não tivesse direito a decisões próprias? Neste caso a prática da virtude é construída sobre a areia movediça da obediência cega, e pode quebrar-se.  Na verdade, o dogma religioso e o ceticismo materialista são as duas caras da moeda falsa da ignorância espiritual.
 
Quando o indivíduo pensa que o caminho espiritual é feito apenas de perdas dolorosas e não traz consigo uma libertação interior e uma bênção, a experiência espiritual pode terminar em hipocrisia - ou pode levar ao extremo oposto do materialismo igualmente cego.  
 
Em seu livro intitulado “Bem-Aventurados os Que Sofrem”, Paul Carlton trata o sofrimento como um grande mestre do ser humano:
 
“É o sofrimento que dá a chave dos mistérios da vida, mostrando a necessidade do abandono das paixões materiais, de maneira que o velho homem desapareça e se estabeleça o reino do homem espiritual. É por ele que se obtém a transmutação do vil metal em ouro puro. É graças a ele que se obtém a renúncia à parte inferior, animal e mortal, e que se estabelece o triunfo da parte superior e espiritual do homem”. [1]
 
Para Carlton, “é somente com renúncias sucessivas que as asas espirituais se desenvolvem e o homem pode voar na claridade do céu”.  Carlton cita Santa Teresa, que via o sofrimento como uma bênção. Ela escreveu:
 
“Eu choro quando penso no tempo em que vivi sem chorar.”

De um certo ponto de vista, aceitar a dor e até mergulhar nela abre as portas para a felicidade. Grandes místicos de diversas religiões seguiram por esse caminho. O segredo está em que, quando aceitamos a dor, ela desaparece. A maior parte do sofrimento humano é, na verdade, psicológico, e surge da nossa luta infantil contra a realidade. A fantasia da resistência aos fatos acaba criando o desespero. Estamos condenados a ser impiedosamente perseguidos por tudo aquilo de que queremos fugir. A dor psicológica é como aquele cachorro que nos persegue latindo com aparência de furioso, mas que, quando paramos e o encaramos, desvia o olhar, disfarça, e afasta-se abanando discretamente o rabo.

Khalil Gibran escreveu que “a dor é o rompimento do invólucro que encerra nossa compreensão”. Para ele, do mesmo modo “que a semente da fruta deve quebrar-se para que seu coração apareça ante o sol”, nós também devemos conhecer a dor. O sofrimento pode ser uma experiência iniciática. Ele amplia nossa visão da vida e nos empurra  para a transcendência, fazendo-nos alcançar um novo nível de consciência e de conhecimento. Neste nível, recuperamos a paz e o equilíbrio sobre bases mais sólidas. Diz Gibran:
           
“Se o seu coração pudesse viver sempre no deslumbramento do milagre cotidiano, sua dor não lhe pareceria menos maravilhosa que sua alegria, e você aceitaria as estações do seu coração como sempre aceitou as estações que passam sobre seus campos. E você contemplaria serenamente os invernos da sua aflição. Grande parte do seu sofrimento é escolhida por você mesmo: é a poção amarga com a qual o médico que está em você cura o seu eu-doente. Confie, portanto, no médico, e beba seu remédio em silêncio e tranquilidade, pois sua mão, embora pesada e dura, é guiada pela suave mão do Invisível, e a taça que ele lhe oferece, embora queime seus lábios, foi confeccionada com lágrimas sagradas.” [2]

A posição de Gibran é sábia. Porém, um exagero na aceitação do sofrimento pode levar por compensação a um salto para o extremo oposto, onde se busca o prazer fugindo infantilmente de toda dor. Por isso é recomendável manter o equilíbrio e a moderação. O pensador grego Epicuro, que viveu entre os anos 341 e 270 antes da era cristã, propôs um caminho de auto-responsabilidade.  
 
Epicuro construiu sua filosofia em torno da idéia do “prazer verdadeiro”, que surge com a renúncia à preguiça e a outros vícios. Para ele, é no ponto intermediário entre a dor e a indulgência que se abre o caminho sólido da sabedoria, fonte da felicidade interior. Epicuro afirmou, em sua Carta a Menequeu:

“Quando dizemos que o prazer é a meta, não nos referimos aos prazeres dos depravados e dos bêbados, como imaginam aqueles que desconhecem nosso pensamento, e sim à ausência de dor na alma. Não são as bebedeiras e as festas ininterruptas que constituem a fonte de uma vida feliz, mas aquela sóbria reflexão que examina a fundo as causas de toda escolha e rejeita as falsas opiniões, responsáveis pelas perturbações que se apoderam da alma. A prudência é o princípio de tudo isso e o bem supremo.”

Durante a maior parte dos últimos 2000 anos, a mente humana oscilou contraditoriamente entre duas atitudes. De um lado, um ideal grandioso de fraternidade e de contato com a consciência divina. De outro lado, uma prática materialista que nada tinha a ver com a teoria. Céu e terra pareciam desconectados.
 
Estamos acordando agora, finalmente, desse longo sonho em que a consciência crística ou búdica do ser humano permanecia “crucificada” pela vida material, enquanto a figura de Jesus impotente, torturado, agonizando na cruz, ocupava o lugar de maior destaque dos templos.  

Resgatar algumas idéias fundamentais da filosofia clássica ocidental é parte significativa desse renascimento. O desafio e o destino dos novos tempos é unir outra vez céu e terra, ou sonho e realidade. Os sábios da Grécia antiga não viam separação entre deuses e homens, ou ideal e prática.  Reexaminando do mesmo modo a relação entre prazer e dor, ou felicidade e sofrimento, obtemos chaves úteis para compreender e acelerar a transformação que está ocorrendo na mente humana, enquanto se prepara a sociedade global e solidária do terceiro milênio.

O prazer e a felicidade, para Epicuro, são simplesmente a ausência de dor no corpo e a falta de perturbação na alma. Nesse ponto, a filosofia grega coincide rigorosamente com a Raja Ioga dos Himalaias. Para os iogues, o nirvana - o êxtase final - é apenas a ausência total de desejo. Todo o resto é ilusório e causa sofrimento.  

Epicuro distinguia três tipos de prazer:

1- Os prazeres naturais e necessários - por exemplo, comer quando se tem fome, beber quando se tem sede, dormir quando se tem sono.

2- Os prazeres naturais mas não necessários - comer muito bem, beber bebidas sofisticadas e “saborosas” vestir-se com muita elegância, etc.

3- Os prazeres não naturais e não necessários - ligados à opinião dos outros, ou seja, fama, riqueza material, poder, honras e assim por diante. [3]

Cada um de nós, na sua condição de cidadão livre, deve definir o que são no seu caso concreto os prazeres adequados. A filosofia de Epicuro não é um dogma, mas um guia para a ação autônoma do ser humano.  Ela dá elementos para que o indivíduo assuma plena responsabilidade sobre sua própria vida, e alcance mais felicidade interior.

Os prazeres do primeiro grupo são os que devem ser satisfeitos sempre. Sua função e seu limite natural é “eliminar a dor”, e não devem ir além desse ponto. O exagero os faria cair no segundo grupo, e neste caso o apego ao prazer passa a gerar sofrimento desnecessário através da perda de bom senso e da moderação. Deve-se, pois, reduzir as satisfações do segundo grupo.
 
Já os prazeres do terceiro grupo sempre acabam causando sofrimento através de ansiedade, incerteza, vaidade, ambição pessoal e outros sentimentos que são inseparáveis do medo.

Epicuro propõe uma postura madura diante da dor e do prazer, com base na ideia de evitar tanto o apego automático como a rejeição cega.  O mesmo ensinamento é encontrado na filosofia estóica.  Lúcio Sêneca propôs no império romano um contentamento incondicional que é item prioritário não só para os epicuristas, mas também para os estudantes de ioga, na Índia milenar.  Para Sêneca, o supremo prazer “vem do alto”, porque o sábio “vive contente com seus bens, sem cobiçar coisa alguma fora de si”. O prazer autêntico surge do contato direto com nossa própria alma imortal.

Epicteto, um ex-escravo romano que fundou uma escola de filosofia estóica, manteve a tradição socrática e não colocou nada no papel. Mas um discípulo anotou seus discursos e sua sabedoria está hoje à nossa disposição. É com grande simplicidade que Epicteto explica a proposta da moderação como caminho para a real felicidade.
 
A seguir, sete idéias centrais do seu “Manual Para Viver”:

UM.
 
Saiba o que você pode controlar, e o que não pode. A felicidade e a liberdade começam com uma clara compreensão de um princípio; algumas coisas estão dentro do nosso controle, e outras não estão. Podemos controlar nossas opiniões, aspirações, desejos e ações, por exemplo. Tentar controlar outras pessoas ou circunstâncias externas é sempre fonte de preocupação, frustração e infelicidade. Devemos cumprir nosso dever e deixar que a realidade seja como é.

DOIS.
 
Ninguém pode ferir você. Mesmo que alguém agrida você com palavras e o insulte, é sempre sua opção sentir-se insultado ou não pelo que está acontecendo. Se alguém o irrita, na verdade é apenas a sua própria reação que irrita você. Portanto, quando alguém estiver aparentemente provocando sua raiva, lembre-se de que é a sua própria visão do incidente que o está enraivecendo - e não se deixe levar por reações automáticas.

TRÊS.
 
O progresso espiritual se faz confrontando a morte e a calamidade. Em vez de desviar o olhar dos acontecimentos dolorosos da vida, olhe para eles de frente e examine-os com frequência. Enfrentando as realidades da morte, das perdas e da decepção, você fica livre das ilusões e falsas esperanças e pode usar melhor sua energia vital.

QUATRO.
 
Dedique sua vida a um ideal digno. Tenha metas pessoais espiritualmente superiores, independentemente do que as outras pessoas pensarem. Permaneça fiel às suas melhores aspirações, seja o que for que estiver ocorrendo ao seu redor.

CINCO.
 
Saiba que tudo ocorre para o bem. Conforme você pensa, você é - ou se tornará. Evite interpretar os acontecimentos supersticiosamente, dando-lhes significados que não têm. Não chegue a conclusões apressadas. Parta do ponto de vista de que tudo o que lhe ocorre lhe traz algum bem, alguma lição e alguma experiência. Se decidir que terá sorte, a terá. Pense de modo calmo e vitorioso.

SEIS.
 
Crie o seu próprio mérito. Nunca dependa da admiração dos outros. Isso o enfraquece extremamente. O mérito pessoal nunca pode aumentar por alguma fonte externa. Seja maior do que críticas ou aplausos, mas leve em conta a opinião dos outros para identificar onde é necessário corrigir erros e como pode melhorar ainda mais.

SETE.
 
Focalize seu principal dever. Há um tempo para descanso e diversão, mas você nunca deve deixá-los prejudicar o seu verdadeiro propósito na vida. Deve escolher formas de lazer e outras atividades secundárias que sejam compatíveis com a missão central que escolheu para realizar. [4]

O caminho dos estóicos adota a mesma ética da filosofia esotérica de Helena P. Blavatsky.
As atividades cujas metas são apenas pessoais e de curto prazo devem ser diminuídas porque, em geral, são ineficazes e provocam sofrimentos adicionais. A verdadeira felicidade está em cumprir nosso dever assim nas vitórias como nas derrotas, tanto nos momentos agradáveis como nos desagradáveis, preservando em todos os casos a paz interior que habita o silêncio.
 
Como Gibran escreveu, “nossa alegria é nossa tristeza mascarada. Quanto mais profundamente a tristeza cavar suas garras em nosso ser, tanto mais alegria poderemos conter”.  E ele acrescentou:
 
“Alguns dentre vós dizeis: ‘A alegria é maior que a tristeza’, e outros dizem: ‘Não, a tristeza é maior.’  Eu, porém, vos digo que elas são inseparáveis.  Vêm sempre juntas; e quando uma está sentada à vossa mesa, lembrai-vos de que a outra dorme em vossa cama. Em verdade, estais suspensos como os pratos de uma balança entre vossa tristeza e vossa alegria.  É somente quando estais vazios que estais em equilíbrio.” [5]  
 
Evitar a euforia e o desânimo, trilhando o caminho da paz interior, é próprio de seres maduros.
A verdadeira sabedoria não se separa da arte de viver com simplicidade. Apontando na mesma direção, o antigo sábio chinês Lao-tzu, o fundador do taoísmo, afirma na obra “Wen-Tzu”:

“O caminho do céu é reverter depois que se atinge um clímax e diminuir ao atingir a plenitude; isso é ilustrado pelo sol e pela lua. Por isso os sábios se diminuem diariamente, esvaziam os seus estados de espírito e não ousam ficar satisfeitos consigo mesmos; eles  progridem diariamente fazendo concessões, assim sua virtude não se desvanece. É assim que funciona o caminho do céu.” [6]


 
NOTAS:
 
[1] “Bem-Aventurados os Que Sofrem”, Paul Carlton, Organização Simões, RJ, 1953, p. 28.
 
[2] “O Profeta”, de Gibran Khalil Gibran, Ed. Acigi, RJ, trad. de Mansour Challita, pp. 49-50.  
 
[3]  Da seção “Antologia”,  incluída na obra “Epicuro – As Luzes da Ética”, de João Quartim de Moraes, ed. Moderna, SP, p. 93.
 
[4] “The Art of Living”, Epictetus, a new interpretation by Sharon Lebell, Harper SanFrancisco, Harper-Collins, 1995, EUA, 114 pp., ver pp. 3, 27, 28, 29, 25, 12 e 14, respectivamente.
 
[5] “O Profeta”, obra citada, pp. 27 e 28.
 
[6] “Wen-tzu – A Compreensão dos Mistérios”, Ensinamentos de Lao-Tzu, Tradução do chinês, Thomas Cleary, Ed. Teosófica,  Brasília, 2002, 198 pp., ver p. 60.
 
 
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O texto acima é uma versão - atualizada pelo autor - do artigo publicado sob o mesmo título na revista “Planeta” em junho de 2000.
 
Sobre o tema de como enfrentar o sofrimento, veja também o texto “As Horas Difíceis”, de Carlos Cardoso Aveline, que pode ser localizado pela Lista de Textos Por Autor no website www.FilosofiaEsoterica.com .
 
Para um estudo regular da teosofia ou sabedoria divina, escreva a lutbr@terra.com.br e pergunte como é possível acompanhar o trabalho do e-grupo SerAtento.
 
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